20101126

Um perverso parlamentarismo

João Geraldo Piquet Carneiro, ex-presidente da Comissão de Ética da Presidência da República, não vê solução simples para uma deformação do modelo político brasileiro em que os governos só costuram apoios pela via da cooptação de congressistas
Por Eugênio Esber  


Nos mais de 450 mergulhos que praticou e continua a praticar até hoje, aos 69 anos, o advogado carioca João Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão de estudos sobre administração pública, evita descer além dos 20 metros. “A partir daí, a visão dos corais e toda aquela beleza hipnotizante vai ficando cinza”, constata. O mesmo cinza que, com bom humor, ele diz ter encontrado na medida em que baixava às profundezas do setor público. Foi uma incursão de 11 anos: seis como coordenador do Programa Nacional de Desburocratização, nos anos 1980, e cinco na presidência da Comissão de Ética da Presidência da República, de onde saiu em 2004.

Desde então , voltou a advogar – é sócio da Veirano e Piquet Carneiro, de Brasília –, mas mantém o comportamento do setor público enquadrado na sua alça de mira. E, como demonstra nesta entrevista a AMANHÃ, não gosta muito do que vê. Mas não se surpreende com o andar lento e incerto das mudanças que deveriam ser incorporadas à gestão pública. “O (Hélio) Beltrão tinha uma frase que não esqueço”, sorri Piquet. “Ele dizia que o poder não resiste a um teste de intimidade.” A grande preocupação é com o modelo de governabilidade em voga no Brasil. “Estamos formando um sistema parlamentarista pelo mais perverso dos modos”, adverte.

Que Congresso o Brasil está elegendo em 2010?

Apesar de todas as campanhas de imprensa em torno da bandeira da Ficha Limpa, não há renovação, não há pessoas sem vínculo, sem rastro, chegando. Porque o candidato, o extrato dele, vem do processo eleitoral, do sistema partidário, tal como existe hoje. Vem de um sistema político que já foi chamado um dia – o nome não louva muito o processo – de “presidencialismo de coalizão”. Nele, o governo é sempre de coalizão: senão o presidente não consegue governar. Assim, vamos ter nos próximos anos o mesmo processo de cooptação de parlamentares vinculados aos partidos A, B, C e D e que formarão a nova base parlamentar. E a moeda de troca continuará a ser, necessariamente, cargo público. Cargo e verba pública. É o princípio do “Follow the Money”, ou veja aonde o dinheiro vai para saber para onde as pessoas estão indo. Em resumo, não vejo grande chance de renovação porque o sistema (que obviamente está vencido) não permite isso. O método da cooptação, para formação de governos, vai continuar. Assim foi sempre, incluindo a era Fernando Henrique e a fase do PT.

Alguns analistas creem que a vitória de Dilma desloca o poder de um líder, Lula, para um partido, o PT. O relacionamento do governo com o Congresso, sob esta perspectiva, muda?

Não. Porque Dilma não conseguirá governar sem o PMDB. Ela não tem o carisma e a liderança de Lula. Para governar, ela teria de caminhar muito para o lado do PMDB. E o PT vai estar satisfeito com o poder que terá? Esta é a questão. Aliás, o PT não é um só, é um conjunto de tendências, algumas mais fortes, outras menos, com disposição histórica para brigar internamente, puxar o tapete... O problema, na minha opinião, será esta expectativa maior do PT de que vai mandar, e a dificuldade de Dilma de lidar com isso. É um cenário difícil para Dilma. Eu tenho a impressão de que um certo núcleo ela conseguirá formar a partir de pessoas como Palocci e outros que passaram pelo governo e que têm prestígio. Eles poderão ajudá-la diante destas pressões. Agora, que os quadros do PT virão com força, virão.

O que muda no governo com Dilma no lugar de Lula?

É um governo focado muito menos na figura presidencial, carismática. Ela não será nem um Lula nem um Fernando Henrique. É claramente uma solução mais tecnocrática, embora esta palavra talvez não seja a mais adequada. O Fernando Henrique pode até ter desejado fazer uma administração técnica, mas ele não era um gestor. Suas credenciais não eram de gestão. As credenciais do Lula também não. Talvez o Collor tenha sido um governador com esse perfil, mas, vindo de um Estado pobre, não tinha a condição de um grande gerente. Já a Dilma tem esta condição, tanto que ela ressalta com frequência o currículo ministerial que tem, a capacidade executiva. Mas governar um país é mais complexo, e sua presidência deve começar muito complicada, especialmente no primeiro ano. Talvez o bom momento da economia colabore muito para manter as coisas bem.
E o governo José Serra, como seria?

Na comparação com Fernando Henrique, o Serra me parece um pouco diferente. Fernando Henrique era um grande negociador também, era paciente, sedutor, delegava mais. Já o Serra é um forte centralizador. Mas, como teve uma grande experiência parlamentar e fez um governo exitoso em São Paulo, eu acho que o Serra negociaria bem o Congresso, especialmente na relação com o PMDB paulista.

Você elege hoje o Tiririca pensando que está fazendo um voto de protesto. Mas, com as sobras eleitorais do Tiririca, você pode estar elegendo um membro do mensalão

Para mudar esta realidade... só mesmo na hipótese de uma reforma partidária muito séria e conduzida em um início de governo. Mas sou muito cético sobre isso. As mudanças teriam de ser profundas. Teríamos de tapar grandes buracos. Vou dar um exemplo deles. Você elege hoje o Tiririca pensando que está fazendo um voto de protesto. Mas, com as sobras eleitorais do Tiririca, você pode estar elegendo um membro do mensalão. Porque as sobras vão para o partido, e estas sobras beneficiam candidatos que você nem sabe quem são. Que representatividade é esta? Como resolver isso? Talvez com a adoção de um sistema que combine elementos do voto proporcional com o do voto distrital. Mas não vejo nenhum horizonte para isso. Não há ninguém se empenhando para fazer esta reforma. E não acho que Dilma, por exemplo, tenha credenciais para liderar esta mudança. Ela vai querer, acima de tudo, assegurar a governança dela. Como vai conseguir governar o país, como atender a todos... O início de governo de Dilma vai ser um déjà vu de vários outros inícios de governo. Nem eles, os governantes, sabem com quem vão governar.

Você publicou um artigo sustentando que, antes da eleição, os candidatos deveriam apontar as pessoas que, em caso de vitória, ocupariam os postos-chave de seu governo, como o cargo de presidente do Banco Central. Isso é factível?

No estado de coisas atual, é difícil, porque não se sabe qual vai ser a composição do Congresso, qual o tamanho do grupo que vai apoiar o presidente e qual o tamanho do grupo que fará oposição. Ao que tudo indica, a situação – PMDB e PT – vai crescer. Isso significará mais aparelhamento, e, de outra parte, mais críticas às escolhas para os cargos com verba. Esta será a pressão, e ela não melhora em nada o padrão ético da política. Nem da política, nem da gestão.

Em que países há menos incerteza sobre formação de equipes de governo?

Nos regimes parlamentaristas é muito fácil prever de que pessoas será composto o governo, porque lá esta questão envolve uma negociação muito mais restrita. O que nós temos hoje no Brasil, e que é uma verdadeira curiosidade, é um regime presidencialista em que o parlamentar pode ocupar cargo no Executivo sem perder o mandato. No presidencialismo americano, isso é impossível. Lá, nenhum parlamentar vai trabalhar no Executivo porque, para fazer isso, teria de renunciar ao mandato. E aqui, não. Aqui, os parlamentares vão para o governo sem abrir mão do mandato, e acabam formando um sistema parlamentarista pelo mais perverso dos modos. Então o parlamentar vai ocupar um cargo com verba e enquanto estiver no posto vai privilegiar suas bases eleitorais. Essa peculiaridade dá ao congressista um poder gigantesco. E também impede mudanças na gestão de empresas que são joias da coroa.

É muito importante que, também no Brasil, um parlamentar seja impedido de servir ao Poder Executivo

Em 2003, a Comissão de Ética Pública, que presidi durante cinco anos, fez um estudo que resultou em um ranking de órgãos mais suscetíveis de corrupção. E quem ficou em primeiro lugar foi a ECT, uma empresa que tem um enorme caixa, muito poder de mercado, é um monopólio e praticamente não tem instrumento interno de reequilíbrio do ponto de vista da ética gerencial. E você nunca viu, até agora, nenhum candidato trazendo sugestões de como lidar com isso. Porque, se trouxer, vai meter medo nos aliados. Então é muito importante que, também no Brasil, um parlamentar seja impedido de servir ao Poder Executivo. E que adotemos alguns instrumentos elementares para moralizar a administração pública.
Por exemplo?

Por exemplo: se você vai fazer uma licitação no âmbito de uma estatal que é objeto de partilha política de cargos, é inadmissível que a Comissão de Licitação seja composta só de funcionários daquela empresa. Porque aí você está oferecendo a banana já sem casca para o macaco. E você pode, por exemplo, criar controles próprios sobre as verbas para poder seguir o dinheiro. Isso pode ajudar a melhorar um pouco. O México, por exemplo, que não chega a ser nenhuma Brastemp em matéria de moralidade pública, tem a figura do representante do povo, que é chamado a participar de comissões de licitação pública. Este representante não pertence ao governo. Claro que tem de trocar logo, porque senão ele pode entrar no esquema. Mas são mecanismos que podem melhorar a gestão das estatais. Para órgãos que não têm seus cargos partilhados politicamente, como Banco Central, Receita Federal, Tesouro Nacional, e que são autorregulados, você não precisa ter este controle.

Licitações têm “n” estágios. Etapas, controles, etc. Depois, você tem corrupção. Como é possível que esses controles não sirvam pra nada? Aliás, eles servem, sim: para corrupção

Pois é... Na verdade, a quantidade de controles aumenta substancialmente a quantidade de corrupção. Vamos dar um exemplo concreto: essa quantidade espantosa de certidões negativas que se pede. Ela leva à indústria da certidão e à indústria da falsificação. O excesso de atestados leva à mesma coisa. Sempre se compra um atestado. Vejamos as compras públicas. É um processo complicadíssimo. Licitações têm “n” estágios. Etapas, controles, etc. Depois, você tem corrupção. Como é possível que esses controles não sirvam pra nada? Aliás, eles servem, sim: para corrupção.
Como melhorar esse processo?

Vejamos um caso. O pagamento de uma obra é feito, sempre, em função da quantidade construída. Você vai fazer uma estrada e a cada “x” quilômetros você mede a obra e tem direito a receber a primeira, segunda, terceira, quarta, quinta parcela, e por aí vai. Cada momento desses é uma oportunidade de corrupção. A gente pode imaginar uma obra no meio da Floresta Amazônica. Está o engenheiro de campo mais o fiscal para medir. Imagina se aí não pode rolar uma conversa de facilitação? Esse processo é uma tentação que se cria para a corrupção. Como funciona um sistema equivalente de obras públicas na Europa? Claro que, lá, tem corrupção, tem influências políticas até na fase da pré-obra... Mas lá é tudo mais simples. Para fazer uma ponte, o poder público pode escolher, a partir de critérios técnicos, entre dois ou três melhores preços. No dia em que o camarada aprontar e entregar a ponte, ele recebe o dinheiro. Até lá, aquilo é financiado pelo próprio empreiteiro – é claro que se submetendo a taxas de juros muito mais razoáveis que as nossas...
Qual a lição que se pode extrair daí?

A lição de que você não precisa de imensos controles. No exemplo anterior, se o empreiteiro não cumprir o prazo leva multa. Mas não tem essas fiscalizações todas, essas oportunidades todas para a corrupção. O que temos hoje em licitações? A fase de pré-qualificação. A regra estabelece que só determinadas empresas, com tais e tais características e experiências, podem participar. Mas o sistema permite que as empresas virem consórcios. Em consórcios, um se soma ao outro, combinam-se divisões... Isso não melhorará o preço da obra final. Eu acredito que, se nós reduzíssemos drasticamente essas exigências formais, no fundo talvez viéssemos a ter um sistema mais competitivo.
As concorrências via internet não tornam o processo mais seguro?

O que vou dizer pode parecer absurdo, mas por enquanto não faz diferença nenhuma ter papel ou não ter papel. Afinal, sempre se terá de cumprir algum tipo de exigência. Pregão eletrônico foi saudado como sendo, esse sim, um sistema de compras maravilhoso. “Ninguém pode corromper, pois afinal aquilo tudo é feito ao vivo. E presencialmente.” Pois já começam a aparecer vários casos de pregões também manipulados. Porque as combinações prévias podem acontecer, ainda mais em situações cartelizadas.

Sempre achei que a digitalização e os recursos eletrônicos deveriam seguir uma política de desburocratização, isto é, ser antecedidos de uma boa limpa do que é desnecessário

Acho que, no Judiciário, faz todo o sentido a digitalização do processo. Afinal de contas, o processo físico, com 100 mil páginas, é imanipulável. Mas a pergunta que deve ser feita é se um processo precisa ter 100 mil páginas. Tudo isso tem de ser lido. Alguém tem de olhar para aquilo tudo. Eu sempre achei que a digitalização e esses recursos eletrônicos deveriam seguir uma política de desburocratização, isto é, ser antecedidos de uma boa limpa do que é desnecessário. De certo modo, isso passa a acontecer no Judiciário porque, na hora de digitalizar, começam a aparecer coisas irrelevantes, papéis que não têm nada a ver com o processo, ou que estão em duplicata... E então passa a existir uma certa preocupação com a tarefa de limpar o processo. Veja, o número de vezes que alguém pode recorrer na Justiça independe de o processo ser digitalizado ou não. Você está aí em Porto Alegre, você é advogado, tem acesso eletrônico ao seu processo, pode recorrer, e fica até mais barato apresentar recurso...

Uma de suas especialidades é a defesa da concorrência, assunto que ganha evidência com a avaliação que o Cade está fazendo sobre a incorporação da Sadia pela Perdigão. Como evitar a formação de cartéis e trustes sem impedir, também, a formação de grandes grupos brasileiros que pretendam competir em escala global?

As autoridades antitruste acabam homologando essas associações, embora fiscalizem e imponham restrições. Acho até que o nosso Cade funciona bastante bem nesse sentido. Mas são ciclos. Hoje, vivemos o ciclo da megaempresa. Concentração empresarial é vista como muito boa, como saudável para os mercados, etc. Então para cada atividade-chave você tem uma ou duas grandes empresas, e só. Foi o modelo que adotamos para Telefonia, Energia Elétrica, etc. Mas já houve época de small is beatiful. Foi nos anos 1980, quando nenhuma grande empresa poderia se associar a outra grande companhia porque a autoridade norte-americana antitruste vinha e vetava. Mas aí era outra filosofia. Agora, não. Agora é big is beatiful. No fundo são ondas, modismos. Já vi umas quatro. Daqui a pouco, se houver problemas com alguma forma criminosa de concentração, então virão as críticas, a sustentar que a culpa é do modelo. E, de fato, quando você tem poucos atores em um mercado, a possibilidade de eles se articularem é grande.
O modelo está permissivo com fusões e aquisições?

 
Talvez em parte esteja, sim. O facilitário existe. Numa reflexão de fundo mais histórico e filosófico, a queda do muro de Berlim decretou o fim dos contrastes. Não há mais alternativa ao capitalismo nosso de cada dia. E os casos de corrupção cresceram na medida em que o Estado não está mais presente e a atividade regulatória diminuiu drasticamente. Agora é que ela está voltando. Mas vigorou o princípio de que não tem mais rédea nenhuma. Tira a rédea do cavalo e deixa ele correr para onde quiser. E aí dá nisso. O Brasil até que ficou bastante protegido. Por mais que a gente não goste, nós aqui temos um excelente Banco Central, uma boa Receita Federal, a Comisão de Valores Mobiliários, – que funciona bem – e o Cade, que também funciona. Portanto, o Brasil dispõe de um mínimo de controles regulatórios, e que têm sido observados. Nossa Lei das S.A, que vem lá dos anos 1970, é excelente – muito melhor que a norte-americana. A nossa legislação de mercado de capitais também. São instituições que funcionam bem. Raramente – ou nunca – aparecem na página policial.

Fonte: Revista Amanhã

Um comentário:

  1. Governo DILMA - Via PMDB - Anda ganhando força a permanencia do atual ministro Wagner Rossi, gostaria de saber como fica o nepotismo neste caso, pois o ministro Rossi ë cunhado do vice presidente eleito? Até tem um Decreto recentemente publicado em junho ou julho deste ano, que regulamenta o assunto. Já que ambos estarão no poder executivo.

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