20100614

'O Segredo dos seus Olhos': uma obra comovente


Ítalo Campos*

Poucas vezes tenho vontade de voltar a ver um filme assim que saio do cinema. Com “O Segredo dos seus Olhos” (Cine Jardins) foi diferente. Quando suspeitei que estivesse chegando ao final, que é surpreendente, já estava com vontade de vê-lo de novo, pela inteligência do roteiro, pela montagem e edição delicada e sutil e pela interpretação exata, densa; pela direção sensível e segura. Assim, todos os ingredientes de um bom filme, inclusive a música, estão nesta película argentina ganhadora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, com direção de Juan José Campanella e, como atores principais, Ricardo Darin, Soledad Villanil, Javier Godino, entre outros.

Um trem parte da estação, um casal se separa em desespero. Como naquela música, “a dor estampada no rosto” é intensa. A cena é dramática, mas também sutil e envolvente. Como nuvem de fumaça, esvanecem-se os personagens e a noção de realidade. O espectador inicia também sua viagem particular nesta bem traçada trama que envolve dois amores, com seus diferentes destinos. O adiamento da realização de um amor, cada um por sua razão, traz à tona as profundezas e turbulências do sentimento humano.

Neste filme, um personagem, aparentemente coadjuvante, que representa um burocrata bêbado, é quem apresenta a agudeza da inteligência, a fina sensibilidade para interpretar os enigmas. E é também o mais fiel amigo. Esse personagem se parece às milhares de pessoas que andam por aí. Às vezes, é nosso colega de trabalho a quem não damos um grande valor; ele é o sábio e o verdadeiro amigo. O trem se afasta da estação, o tempo corre. O tempo não obedece à linearidade dos trilhos, nem corresponde à concretude da locomotiva que nos carrega; ele tem o estatuto do mito que é inventado apenas para nos organizar, para nos oferecer um sentido, que não é único.

Esse personagem bêbado nos ensina que somos dirigidos pelas nossas grandes paixões, e que estas, sim, definem nosso destino. A paixão que nos orienta e que alimenta nossa vida também nos aprisiona, se não pudermos vivê-la, diz o filme. Um apaixonado no filme é preso à vingança e, portanto, ao amor perdido. O outro é preso numa paixão por medo de assumi-la e a ela fica preso até reescrevê-la com todas as letras.

Em flashbacks, em que passado, presente e futuro se misturam, o filme faz também uma reflexão sobre a vida, sobre a angústia de escrever, que parece ser sempre reescrever. Escrever é a chance de reviver e, ao reviver, pode-se escrever a vida de um outro e novo jeito. A angústia e a libertação são, muitas vezes, para nós, sujeitos humanos, como o filme sugere, encontrar a letra que falta, a letra que recalcamos, a letra que não queremos ver. E que, quando encontrada, faz com que o texto e a vida deslizem e prossigam, explodam, e floresçam. Como num romance.

Como nos contos de Edgar Alan Poe, há um entrecruzamento de vidas e efeitos de gestos humanos. Às vezes, uma influência se origina de um acontecimento discreto, mas avassalador. Outras vezes essa influência surge de uma realidade crua, monolítica, de um terremoto que soterra, arrasa e, ao mesmo tempo, revela o que estava nas profundezas, a outra face oculta da mente e do desejo .” Tudo isso é humano”, poderia ter dito o burocrata bêbado e bem-humorado, que merecia muito mais do que teve, mas não quis. Amargo destino!

É um filme rico, brilhante, bem lapidado. Não há excessos, imagens ao acaso, diálogos inúteis. O filme faz sutilmente críticas aos poderes constituídos, revela a crueldade e ilegalidade de instituições governamentais, faz críticas de costumes sem cair em discurso de vanguarda ou panfletário. É capaz de ser erótico sem ter nenhuma cena de sexo, nem beijo. É capaz de ter momentos de humor sem ter um diálogo para isso, de ser denso sem ser sufocante.

Embora à primeira vista possa não parecer, é o filme do ideal romântico: o mal é punido e encarcerado e o amor triunfa sobre o tempo e as dificuldades, como diz a heroína do filme. Um grande filme, um ótimo programa.

*Ítalo Campos é psicanalista e poeta
Fonte: A Gazeta

Um comentário:

  1. Realmente o filme é um espetáculo. Parabéns ao psiquiatra Ítalo Campos pelo texto. Tão bom como o filme.
    Penha Saviatto

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