20100614

Chegou a era do videofone


Como um novo celular que permite chamadas com imagens vai mudar de vez a maneira como nos comunicamos.

Por Edson Franco



"Inventar coisas que as pessoas nem sabem que precisam." Transformada em uma espécie de mantra, essa frase, durante décadas, estimulou os funcionários da fabricante americana de eletrônicos Apple a criar produtos que revolucionaram mercados e se tornaram sucessos comerciais indiscutíveis, como o tocador de música iPod e o computador portátil iPad. Em uma atitude rara em sua história, porém, na semana passada a empresa liderada pelo mítico Steve Jobs seguiu em outra direção para chegar ao mesmo lugar. Lançado na segunda-feira 7 em San Francisco, na Califórnia, o novo celular da Apple, o iPhone 4, nasce sem esse apelo desnorteante, mas pode ter dado início a uma nova era na forma com que as pessoas se comunicam. Desta vez, o usuário sabe exatamente por que precisa do aparelho. No caso, falar ao telefone enquanto vê o interlocutor e é visto por ele. Em vez de inventar uma necessidade, a empresa de Jobs se empenhou em trazer à luz um equipamento que dá vários passos fundamentais para viabilizar e popularizar o velho sonho da humanidade de ter um videofone privado, funcional e, sobretudo, portátil. “Cresci vendo os comunicadores dos “Jetsons” e de “Jornada nas Estrelas” na tevê, sonhando com videochamadas. E isso é real agora”, afirmou Jobs durante a apresentação do aparelho.

STEVE JOBS
“Cresci sonhando com a videochamada”

Tanto na ficção quanto na vida real, os consumidores ávidos por novidades tecnológicas salivam por um lançamento desse tipo desde 1927. Naquele ano, chegou ao cinema o filme “Metropolis”, que, apesar de mudo, trazia cenas em que personagens usavam um aparelho que fundia telefone e transmissor e receptor de vídeo em tempo real. Foi também em 1927 que um secretário de Estado americano fez a primeira ligação com um ancestral do videofone, de Washington a Nova York. De lá para cá, várias empresas, inventores e até cidades se lançaram na aventura de tentar fornecer produtos e serviços que tornassem corriqueira essa promessa tecnológica quase centenária. Nenhum plano ou produto vingou. O caso mais longevo aconteceu na cidade francesa de Biarritz, onde nos anos 80 os moradores passaram uma década conversando com a imagem do interlocutor em uma tela. A falta de adesão deu um fim a esse serviço, que mais parecia com as ligações em vídeo por Skype e com webcam, já corriqueiros nos dias de hoje, mas que, por dependerem de computadores para fazer a conexão, ainda não cabem no bolso. Ter muitos usuários também não resolve a questão. Bons de venda, modelos recentes de celular capazes de operar o milagre da troca de sons e imagens – caso do Nokia N900 e do HTC EVO – não tiveram força suficiente para anunciar uma nova era com videofones espalhados pelos cinco continentes. Então, por que pode dar certo agora? E por que com o aparelho da Apple?

“Quando o aparelho chegar, certamente eu serei o primeiro a comprá-lo”
José Otávio Marfará, diretor-presidente da Reebok Academy

As respostas que valem muitos bilhões de dólares estão no dom de Steve Jobs de criar mercados a partir de seus produtos. Em sua estratégia, a empresa aposta num campeão de vendas – neste mês a Apple comemora a comercialização de 100 milhões de unidades das versões anteriores do iPhone – como veículo para a popularização da nova tecnologia. Mais que isso, bolou um esquema que permite ao consumidor utilizar esse tipo de aparelho sem deixar uma fortuna todos os meses na operadora de celular – afinal, transmitir imagens num sistema em que a conta é baseada em pacotes de dados restringiria o uso do videofone a meia dúzia de milionários. Pelo sistema utilizado atualmente nos Estados Unidos – com a chamada tecnologia 3G –, ao fazer suas videoligações, o usuário de um plano básico da operadora AT&T, que tem o monopólio dos serviços com iPhone no País, gastaria em uma hora cerca de 84% dos dados a que teria direito ao longo de 30 dias. Isso porque a transmissão de imagens exige muito mais das redes de telecomunicações do que a de voz. A questão custo é tão importante que a primeira reação da própria AT&T foi cancelar os pacotes de dados ilimitados, temendo que as videochamadas sobrecarregassem suas redes e gerassem prejuízos. Para driblar problemas como esse, o iPhone 4 só fará ligações com imagens em ambientes que contam com sistema wi-fi, de internet sem fio, nos quais a cobrança não tem como base o volume de dados transmitidos.


Além disso, as chamadas com vídeo só são possíveis de iPhone para iPhone. Manter sistemas incompatíveis com as demais marcas é uma característica recorrente em novidades da Apple. Poderia ser um problema que inibiria a disseminação da tecnologia. Só que a prática tem mostrado que, para satisfazer seus consumidores, a concorrência acaba tendo de ir atrás e oferecer produtos semelhantes. Aconteceu com o iPod, com o sistema de telas sensíveis ao toque do iPhone e, mais recentemente, com a geração de computadores portáteis iPad. Se ocorrer novamente agora, foi dada a largada para a corrida do videofone. “Todas as vezes que a Apple aparece com essas novidades, obriga as outras a se mexer”, diz Rogério Coelho, especialista em desenvolvimento de mídia móvel da Predicta, consultoria paulista especializada no gerenciamento de marketing online. “As operadoras trabalham para deixar a tecnologia 3G mais barata e eficiente. Até lá, o videofone vai funcionar muito bem com o sistema desenvolvido pelo time de Jobs. Principalmente nos países mais desenvolvidos, onde há conexão do tipo wi-fi em quase todos os lugares.”

Depois de tirar do caminho os impedimentos de ordem financeira, a empresa não descuidou de uma de suas especialidades: livrar o consumidor de ter de passar horas decifrando manuais para poder tirar o que o produto tem de melhor. O FaceTime, programa usado para fazer as ligações com vídeo do iPhone 4, simplifica a vida do usuário ao apresentar na tela todas as instruções necessárias. “Esse programa torna fácil, intuitivo e divertido ligar. E isso dá ao aparelho o potencial para transformar-se em algo que pode fazer a diferença em nossas vidas”, anima-se a analista Carolina Milanesi, vice-presidente de pesquisas da consultoria Gartner e especialista em dispositivos móveis.

“O novo iPhone vai me ajudar muito no trabalho,
sobretudo pela possibilidade de fazer video-conferência”

Fábio Takeuti, designer do hospital Albert Einstein

Antes de correr atrás da Apple, os concorrentes reagiram mostrando que boa parte das tecnologias anunciadas por Jobs já estava incorporada em seus produtos. A Motorola tem dois aparelhos com videoconferência. A empresa se nega a falar sobre futuros lançamentos e possibilidades. No portfólio atual da Nokia, são nove celulares que suportam chamadas em vídeo. O primeiro aparelho da empresa com capacidade de videochamada foi o 6650, lançado em 2002. Em maio de 2005 foi lançado o Nokia 6680, com câmera frontal dedicada às videochamadas e que trazia um diferencial enorme em relação à Apple: permitia a ligação com aparelhos de outros fabricantes. A Samsung tem cinco celulares que fazem videochamada, lançados de 2009 para cá. O problema é que sobram aparelhos, mas faltam planos viáveis de popularização. Pouco adianta ser capaz de mandar e receber voz e imagem, se isso só é feito a preços exorbitantes.

Outra forte arma da Apple para liderar a nova era do videofone é um certo messianismo que reveste todos os anúncios feitos pessoalmente por Jobs. E isso faz consumidores perderem a sua característica passiva e virarem praticamente divulgadores não remunerados dos produtos da empresa. “Recebi um e-mail da Apple falando sobre o lançamento desse novo iPhone. Quando chegar ao Brasil, certamente serei o primeiro a comprar. No lançamento do iPhone 3GS aqui, havia apenas 500 aparelhos, e eu fiquei com um deles. Mas não compro só por comprar. Uso tudo no meu trabalho e na minha vida pessoal”, diz José Otávio Marfará, diretor-presidente da Reebok Academia Sports Club no Brasil. Quando o novo iPhone chegar por aqui dificilmente Marfará vai poder “usar tudo”. Pelo menos no que depender da boa vontade de quem cuida de telecomunicações no Brasil. No governo federal não há nenhuma providência sendo tomada com o objetivo de preparar o País para receber as novas tecnologias do iPhone. O que há é o tradicional jogo de empurra entre os órgãos do setor. Procurada por IstoÉ, a assessoria de imprensa do Ministério das Comunicações informou que o ministro José Artur Filardi não falaria porque “a responsabilidade pelo iPhone é da Anatel”. Na Anatel, os assessores pediram perguntas por escrito, mas depois de 24 horas informaram que “o assunto foge ao escopo da agência” e recomendaram que a reportagem procurasse o Ministério das Comunicações. Normal.


Enquanto o Poder Público não se entende, a linha de montagem da Apple já tem agendada para setembro a entrega dos primeiros aparelhos que vêm para o País. Assim, as operadoras de telefonia celular nacionais têm pouco mais de dois meses para tirar da cartola estratégias que permitam vender todos os recursos do novo celular, principalmente o videofone. Aparentemente pegas de surpresa pelo anúncio do novo produto, Claro, Tim e Vivo afirmam não ter informações sobre a chegada do iPhone 4 e os possíveis planos que serão oferecidos com ele. A Oi se limitou a afirmar que vai comercializar o produto no Brasil.

Apesar do tempo exíguo e da aparente falta de informação, é pouco provável que, quando o aparelho estiver disponível, as operadoras já não tenham uma estratégia para comercializá-lo. Quem ficar para trás, pode perder a preferência de uma categoria inteira de consumidores fiéis às novidades imaginadas por Jobs.

“Confesso que me deixo ser seduzido por essa marca. Sou um pouco sem personalidade com relação a Apple”, diz Sergio Mota, 43 anos, doutor em literatura e professor do Departamento de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Apesar de parecer dominado, ele se permite um momento de reflexão e pergunta se de fato ele precisa de um iPad, mas já está preparando o terreno cerebral para que o iPhone 4 entre em sua vida assim que aportar no Brasil: “A possibilidade de fazer uma videochamada é uma coisa incrível que o novo aparelho oferece. Não quero ser perdulário, pois comprei o meu 3GS há poucos meses, mas talvez eu não resista quando vir o iPhone 4.”




“Comprei o meu iPhone 3GS há pouco tempo, mas acho que
não vou resistir quando o novo chegar ao País”
Sergio Mota, professor da PUC-RJ

Outro desses adeptos apaixonados pela marca é Fábio Takeuti, designer digital do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “Tenho o iPhone 3GS e o computador Macbook Pro, que me ajudam muito no meu trabalho. O iPhone 4 vai me ajudar ainda mais, principalmente pela possibilidade de fazer videoconferência e vídeos em alta definição.”

Tanta empolgação revela quanto os “applemaníacos” apoiam quase cegamente os produtos e os serviços oferecidos pela empresa. A ponto de varrer para baixo do tapete implicações importantes que vêm a reboque de um futuro em que possivelmente vamos ter um videofone em cada esquina. Quando ele tocar, por exemplo, o usuário não vai simplesmente atendê-lo prontamente. Antes, no mínimo, vai dar uma checada no penteado. Quem estiver do outro lado da linha sempre poderá saber onde o interlocutor está, o que há em volta dele, quem está por perto. E isso incomodará muita gente. Ou seja, o potencial de devastação da privacidade estará presente como nunca nessa nova era. Ao vivo, em cores, com som e na tela do seu videofone. “Existe quem critique a ferramenta, mas ela não é geradora dos problemas. A energia atômica, por exemplo, pode ser usada para destruir ou para desenvolver a medicina. O indivíduo é que deve dizer como vai lidar com isso e preservar os seus valores”, afirma Rosa Maria Farah, psicóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática (NPDI), da PUC-SP.




Colaboraram: André Julião, Cilene Pereira, Fabiana Guedes e Hugo Marquesa
Fonte: Isto é Independente

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