Muito do que é tratado como invenção não nasce do zero
Por André D'Angelo
Por André D'Angelo
A lembrança dos 40 anos da morte de Coco Chanel, em janeiro, colocou em evidência a vida e a obra da estilista francesa. Contribuíram para isso filmes, peças e livros que, nos últimos anos, esmiuçaram a biografia de Chanel, dando especial destaque à sua infância sofrida, à agitada vida amorosa e ao tino para os negócios. A mim, pessoalmente, chamou mais a atenção uma referência quase escondida feita pelo site de O Estado de S. Paulo sobre os mitos que cercam determinadas criações de Chanel – e que, segundo o jornal, não teriam sido criações na estrita acepção da palavra, e sim adaptações de invenções alheias. Entrariam nessa lista o sapato bicolor, o tailleur e as calças femininas, todas erroneamente atribuídas à Chanel e que, na verdade, datariam do século 19. Chanel teria tratado de adaptá-las e difundi-las, tão somente.
“Tão somente”? A expressão sugere um imerecido tom de desprezo por uma tarefa que exige tanto esforço e talento quanto a criação entendida como tal, pura e iniciada do zero. De fato, é necessário se autopoliciar para não cometer essa injustiça: adaptações e aperfeiçoamentos exigem boas doses de inventividade e inteligência, o que os caracteriza como tão meritórios quanto a criação original, mesmo que o adjetivo “inédito” nunca vá lhe caber de direito.
O caso de Chanel é paradigmático: pode não ter sido ela a precursora de determinados trajes ou estilos, mas sua argúcia em reinventá-los para lançar em um momento histórico propício foi o estopim de uma revolução no jeito de vestir das mulheres. Chanel se consagrou no pós-1ª Guerra ao propor uma moda feminina mais simples e funcional, adaptada às condições econômicas da época e ao novo papel social da mulher. Eliminou ornamentações desnecessárias, reduzindo o volume de tecido necessário para confeccionar uma peça, e tornou a utilização de muitos modelos tradicionais mais prática e confortável. Favoreceu, assim, as mulheres que recém ingressavam no mercado de trabalho e reivindicavam, no seu íntimo, o direito de vestir-se de maneira menos rebuscada. Chanel libertou-as ao revisitar criações antigas e propô-las em novos formatos, bem como em um contexto social favorável. Tudo isso não deixou de caracterizar um ato de criação, ainda que construído sobre invenções anteriores.
Tal forma de evolução não fica circunscrita ao terreno da moda. O mais incensado dos homens de negócios do mundo, Steve Jobs, é um mestre na arte da inovação incremental. Popularizou o mouse e a interface gráfica nos computadores sem tê-los criado de fato; a inspiração para ambos veio após uma visita à Xerox, que já havia até construído protótipos destas duas invenções. Mesmo seus produtos mais recentes, como o iPod, o iPhone e o iPad, não foram pioneiros em suas respectivas categorias. Tocadores de música digital, smartphones e tablets já existiam bem antes da Apple colocar suas versões à venda. A empresa de Jobs teve o mérito inconteste, no entanto, de aprimorar as criações alheias a ponto de torná-las, sob o logotipo da maçã, referências estéticas e funcionais nas tarefas que desempenham.
Descobertas como essas sobre Chanel e Jobs podem soar decepcionantes para seus fãs ou mesmo para aqueles que creem na figura idealizada do criador. Na verdade, deveriam ser tomadas como portadoras de uma mensagem otimista sobre a natureza da evolução da humanidade. Retirar parte da aura de mistério que recai sobre o processo de criação não significa desmerecer o sucesso de figuras públicas reconhecidas. Significa, somente, entender que originalidade e ineditismo são mais um rótulo do que uma verdade factual, e que assinaturas únicas sob determinados feitos dificilmente fazem justiça às diversas mãos que os viabilizaram ao longo do tempo, voluntaria ou involuntariamente. Verdades assim, pouco favoráveis à mitificação, ajudam a entender que o conceito de criação é bem mais largo do que se desconfia – e que, felizmente, pode contemplar habilidades mais bem distribuídas entre as pessoas do que pretensos dotes superiores exclusivos a poucos eleitos.
Fonte: Revista Amanhã
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