20100830

Uso excessivo de redes socais pode gerar conflitos de identidade

Acordar pela manhã, escovar os dentes, tomar um café rápido e sentar-se à frente do computador, que, naturalmente, já estava ligado desde a madrugada anterior. E-mail aberto, MSN e Gtalk em status “ocupado”, mostrando frases longas para declarar o novo dia. “O que você está fazendo?/O que está rolando?”, pergunta o Twitter, enquanto o upload daquela nova foto é finalizado no Orkut — e no Facebook. É assim até anoitecer, quando os “amigos” mais velhos estão chegando do trabalho para reclamar do trânsito, do chefe e da namorada que foi embora, para comentar as novas atualizações no perfil de uma personalidade qualquer ou para conferir os vídeos mais votados no YouTube.

Se a história é familiar, não fique assustado. A geração de usuários da internet nascida depois de 1990, década em que a rede mundial de computadores se tornou popular, está crescendo com uma necessidade cada vez maior de estar conectada e afirmar sua identidade de forma on-line. “Quanto mais uma pessoa tem informação, debates e conversas pela internet, mais ela precisa ter para se informar e mostrar ao mundo quem ela é”, explica o psicólogo e terapeuta do comportamento Gilberto Godoy.

O estudante de publicidade Filyppe Saraiva, 23 anos, conta que se sente mal quando passa mais de um dia sem entrar na internet. “Uma semana off-line? Acho que fico maluco. É muita coisa para ler e comentar.” Filyppe está conectado atualmente a 17 redes sociais e passa todo o tempo on-line em alguma delas, seja pelo computador ou pelo celular. “Preciso acompanhar as notícias que chegam ao meu e-mail por serviços de reader, comento em alguns blogs, respondo vários e-mails. Passo o dia acompanhando o Twitter pelo celular e sempre que tenho tempo livre posto em um dos meus três blogs — um sobre poesias e música, um site de conteúdo geek (direcionado apenas a coisas tecnológicas) e um blog onde comento temas do dia a dia.”

Exagero? Ele explica que já se sentiu sufocado pelo número de redes sociais que usa, mas que hoje consegue lidar bem com todas. “Chega uma hora em que você perde todo o tempo livre para ler todos os assuntos que te interessam, conversar com os seus amigos que estão no MSN ou adicionar todo mundo que aparece no Orkut. Precisei desistir de várias dessas redes para amenizar essa necessidade de acompanhar tudo. Algumas pessoas que conheci não souberam lidar com isso da mesma forma”, comenta.

A bancária Kate Saraiva, 22 anos, não tem os mesmos hábitos que o primo Filyppe. “Leio meus e-mails e tweets pelo celular. E só. Mal consigo manter conversas muito longas pela internet. Já tentei e cheguei a fazer amizades importantes pela web, mas nada substitui o contato que tenho com meus amigos, mesmo que por telefone, em cidades diferentes. De certa forma, viver nesse mundo cibernético nos mantém distantes, nada é muito real. Acho estranho quem consegue passar o dia na frente do computador. Não dá certo para mim”, explica Kate.

Esconderijo
Gilberto Godoy explica que essa necessidade de estar conectado deve ser observada com cuidado pelo internauta. Segundo ele, há pessoas que se tornam tão intimamente ligadas àquilo que postam e leem na web que passam a viver essa realidade em horário integral. “Os amigos são todos virtuais. Essa pessoa só se sente à vontade para se expressar pela internet. Aos poucos, ela não precisa se relacionar com alguém pessoalmente, já que é mais seguro se `esconder` atrás de um perfil.”

O psicólogo ainda chama atenção para a falta que os relacionamentos interpessoais podem causar. “O indivíduo se encontra em uma busca incessante por complementação. Ele quer se sentir aprovado, quer que gostem da imagem criada na web, se autoafirmar. Essas pessoas sofrem de alguma forma com seus autoconceitos”, explica Godoy. Autoconceito diz respeito à forma com que o indivíduo se percebe no mundo e como acredita que as outras pessoas a veem. “Quem passa o dia navegando na internet passa a formar seu autoconceito também a partir da aceitação que tem dos amigos virtuais. O que eles comentam sobre suas fotos, sobre seus gostos e sobre aquilo que é dito vai influenciar de alguma forma a maneira com que o indivíduo se aceita”, avalia.

Filyppe acredita que vários dos amigos virtuais que conheceu gostam de exaltar suas características principais, criando espécies de personagens, para que serem melhor aceitos. “Todo mundo tem aquele amigo no Orkut ou segue um perfil no Twitter que se apresenta como ‘a bonita’, ‘o nerd’, ‘o depressivo’ ou ‘o inconformado’. Conheci gente que passava o dia comentando coisas absurdas sobre a própria vida para ter um retorno. A qualquer momento do dia, eles estavam on-line, falando de tudo, o tempo todo. Isso é impossível para mim.”

Godoy afirma que o excesso de redes sociais e a dependência da conexão podem gerar conflitos de identidade. “Essa relação com a internet começa a ficar nociva quando o usuário passa a viver e precisar desse personagem que criou para si. Será que alguém é mais feliz porque tem mais seguidores, mais comentários, mais fotos publicadas? Algumas pessoas podem acreditar que sim”, explica.

Criatividade
Especialista em educação na web da Universidade de Brasília (UnB), o professor Luis Teles afirma que a internet e as múltiplas opções de sociabilidade que ela oferece podem ser usadas de forma positiva. “A identidade on-line deve ser usada a favor do internauta, como espaço para a exaltação da criatividade e das qualidades diversas que esse indivíduo tem. Não há nada mais gratificante do que a comunicação presencial. Por outro lado, a comunicação pela web vem para somar valor ao indivíduo, quando bem usada”, explica o especialista. Kate Saraiva exemplifica isso ao lembrar que muitas empresas recorrem à internet na hora de conhecer melhor seus colaboradores. “Eu sou aquilo que coloco na internet. Meu trabalho, minha identidade está ali. Muita gente consegue usar isso a favor.”

O blogueiro Daniel Carvalho, 23 anos, conseguiu aplicar o gosto pela internet ao criar um personagem completamente diferente dele. Desconhecido até 2008, o criador da personagem virtual Katylene e recém-contratado da MTV afirma que a internet nunca foi um problema. “Por conta do blog, preciso passar o dia conectado à internet. Recebo muitos e-mails e se passo um tempo maior sem postar, recebo mensagens dos leitores cobrando atualização”, conta. Mesmo com o trabalho pesado, Daniel se esforça para manter uma vida tranquila longe do computador. “Sempre gostei de estar on-line e adoro o meu trabalho. Isso, porém, não muda o fato de que preciso viver o mundo real também”, afirma.

O professor Luis Teles afirma que o segredo é não tratar a internet como a única opção na hora de se comunicar. “Qualquer pessoa tem necessidades fora da internet. Quando isso passa dos limites e atrapalha as relações interpessoais do indivíduo, talvez esteja na hora de desligar o computador.”
Fonte: Correio Braziliense

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